quinta-feira, 24 de abril de 2008

reza a lenda

Reza a lenda que ela era jovem... E como todas as outras meninas ela fazia planos para o futuro. Sim, planejava. Acreditava que sonhar era fantasioso, idealizado. "Um dia vou ser alguém". Passo a passo executava com perfeição seu plano de vida. Às vezes (quase sempre) imprevistos a obrigavam a mudar sua estratégia, mas ela seguia, sempre sem perder o foco... Ser alguém. Tudo fluía como deveria, as coisas estavam acontecendo cada qual no seu tempo, ela se envaidecia com todas as suas conquistas, mas ainda havia algo a ser alcançado: seu emprego. Uma entrevista, um "não" - seu cabelo era feio. Outra entrevista, outro não - sua personalidade não se encaixava no perfil da empresa... Era muito baixa; não tinha carteira de motorista; não tinha a escolaridade exigida; não tinha carro próprio... "N" foram as justificativas para todos os "nãos" que recebeu. Após alguns meses de expectativa os ventos mudaram. As oportunidades e respostas, também. Uma entrevista, um "você é brilhante, mas aguarde nosso contato". Outra entrevista, outro "você é brilhante , mas aguarde nosso contato". Esperanças já não existiam quando foi de encontro a sua última oportunidade, ou pelo menos uma delas. Acordou bem cedo, calçou seus sapatos mais bonitos (e apertados), penteou os cabelos e foi buscar seu futuro. Após muitas horas de conversa fiada e joguinhos sem-noção foi dispensada. Motivo: ela não possuía fluência verbal. Foi três vezes consecutivas campeã do concurso de poesia de cordel, conseguiu bolsa na faculdade graças a uma redação, conhecia três idiomas estrageiros, fez 6 cursos de especialização (3 deles em empreendedorismo e desenvovilmento de ideais)... E uma fulana-qualquer, aparece para dizer-lhe que não possui fluência verbal!! Antes ela tivesse dito que a candidata não se encaixou no perfil, ou que não tinha ido com sua cara... Mas fluência verbal? Ela não acreditava, perdeu o emprego dos sonhos. O emprego com o qual havia sonhado anos, planejado, arquitetado... Fluência verbal. Perdeu a vaga para uma candidata que falou "vagas abridas" e outra que disse "estar educano urfilho prun-a vida melhó"! Ela não se conformou, voltou até a sala a qual havia sido retirada, chamou a fulana-qualquer e lhe perguntou qual o real motivo da dispensa e ouviu um sonoro e ruidoso: "Faltou paixão. Não vi paixão em seus olhos." Ao ouvir a justificativa, retirou-se do local, caminhou alguns minutos, sentou-se em um banco de praça. Inconsolável, percebeu que já passava das 17hrs. Doze horas sem comer. Após um bocejo demorado, lembrou-se que acordou às 5 hrs. Tirou da mochila um par de chinelos Havaianas e calçou-o no lugar dos sapatos apertados. Contemplando as bolhas de seus pés, enxergou a paixão que lhe faltava nos olhos. Enxergou sua vontade. Enlouqueceu. Dizem por aí, que semana que vem ela tem outras entrevistas para o mesmo cargo em outras empresas... Outros dizem que ela se enforcou no vão central da ponte Rio-Niterói... E ainda há quem diga que ela tem um blog e fica horas sentada à frente do computador contando e recontando essa história sob a fachada de um título que diz: "Reza a lenda"...